Arthur, o homem de bem

Por Maria Beatriz de Castro

Don Draper (Jon Hamm) - Mad Men.

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Quando mais nova, queria me chamar Tati. Ou Dani. Ou qualquer nome curto que remetesse à uma loira peituda e de cabelos lisos, que enfeitiçasse rapazes com suas curvas longilíneas e permeasse suas mentes através dos séculos. Não podendo ter um nome curto, aceitava um diminuitivo. Queria ser a Ritinha.

Aquela Ritinha, a do Ensino Médio. “Lembra?!”, pergunta o Arthur na mesa do barzinho — de lei, segundo a galera descolada — de quarta-feira. “Lembra da Ritinha, que é aquilo hein? Dezesseis anos, cara, dezesseis! Lembro do primeiro boquete que ela pagou pra mim, matando aula de Educação Física. Era gostosa demais, mas uma piranha, né. Vadia mesmo. Imagino hoje como deve tá caidassa, cê sabe né? Essas mulheres precoces, cai tudo depois de um tempo brother, cai tudo, tem que ver”.

Arthur filosofava sobre Ritinha enquanto coçava (ou a palavra mais apropriada seria acarinhava?) a pança que preservava como um troféu dos seus anos de puteiro-balada-birita antes de se entrelaçar com a mulher de sua vida, Carol. Três mulheres e dois homens bebiam na mesa ao lado. Uma das mulheres tentava, mas não conseguia se concentrar na conversa de sua mesa. “Carol é que é mulher de verdade”, diz Arthur.

“Carol trabalha de secretária, limpa a meleca do Pedrinho, assiste ao ensaio do balé da Aninha, mandar lavar as roupas a seco, limpa as dobradiças das janelas da casa com escova de dente infantil, paga as contas no prazo, está sempre de unhas feitas e cabelo recém-saído do salão, faz yoga, tem cheiro de perfume francês, depila o sovaco religiosamente e faz lula à provençal e musseline de batata baroa pro jantar. Carol, ô mulher boa que fui arrumar”, diz Arthur, coçando o saco dessa vez.

Após um minuto de silêncio para um momento de reflexão profunda dos participantes da mesa, Arthur inspira fundo e conclui: “que pena que no sexo é uma merda, né”. “Tá dando não?”, pergunta Matheus, que até o momento só rira e enchera o copo dos amigos, sem nenhuma opinião mais idiota que pudesse valer algo na conversa.

Incomodada, a moça da outra mesa se mexe na cadeira e pigarreia em sinal de reprovação. Não surte efeito. “Tá não. ‘Tô cansada, tô com dor de cabeça, é novela, é prestação da casa, é o tal curso superior que teima que quer fazer… não tá dando. Mas pra isso existe a Manuela”. “Essa é nova”, replica Alberto.

“É nova, sim”, diz Arthur com cara de satisfação, “tamo aí há umas duas semanas. É profissa essa, sabe o que tá fazendo. Psicologia, ela faz. Bonita demais, demais mesmo. Uma vadiazinha né, coitada, sabe que eu sou casado e fica me encontrando depois do trabalho. Deve ser a caroninha que dou pra ela e pras amigas irem pra baladinha. Ou o champagne que eu banco. Universitária é tudo facinha”. “Tudo facinha”, diz um outro sentado à mesa.

A moça na mesa ao lado não consegue se segurar e cutuca Arthur, que vira para trás sobressaltado, como alguém que sempre está esperando ser pego. “Tem mulher aqui, viu? Que jeito de falar, não somos obrigadas não! Vai ser machista assim longe!”. “Ah, vai…” Irritado, vira de volta, bate com o copo na mesa, solta palavrões em voz alta. Levanta e diz que vai embora, que vai é pra casa, bar não é lugar de mulher por essas e outras. Os amigos tentam detê-lo — deixa ela pra lá, esquece isso, quer caçar confusão? Espera, toma a saideira, vem cá!

Já alterado pela bebida, Arthur, com seu orgulho de homem de bem ferido, mareja os olhos enquanto fixa um ponto cego do outro lado da avenida. “Não tá fácil pra ninguém, né. Não tá, não. Eu trabalho, sustento meus filhos, pago viagem de fim de ano, prendedor de cabelo, caderno de figurinha, tudo. Vou em aniversário de família, defendo as cotas, defendo até veado, esses gays aí? Deixa esses gays casar, pô, deixa casar, não vindo pro lado da minha família tá bom. Não bato em mendigo, não boto fogo em mendigo, pago meus impostos. E ainda tem que ouvir merda desse tipo, que porra. A gente faz tudo certo e ainda tem que ouvir merda!”

“O que é que eu fiz que te incomodou tanto?” ruge, novamente, ao se lançar em direção da moça com a empáfia e a postura de um pavão. Ela ignora. “Que que eu fiz? Eu nunca bati em mulher não minha filha, tá falando que eu sou machista? Nunca relei a mão em mulher! Que que isso. Vadia, quer arrumar confusão, é? Quer?” “Para, Arthur. A mulher já tá quieta”, falam os carneirinhos-amigos-homens de bem. “Vem uma puta me dizer o que eu tenho que falar?!”, esbraveja Arthur. Que se foda, merda. Eu pago imposto, sou trabalhador! Ah, quer saber…

Levantou de supetão, olhou para a mulher com ar de indignação, e, sem um olhar de resposta, saiu cambaleante em direção à calçada oposta. Bêbado e sozinho, ainda gesticulava e murmurava para si mesmo seus argumentos pífios: esquentava lasanha para as crianças quando a mulher não estava, nunca roubou, nunca matou, passava a própria camisa e até louça já lavou!!! Entrou no táxi e achou plateia para sua palestra: o taxista lamentava mentalmente não ser final de semana e ter de ouvir sobre a Internet de 10 mega que Arthur pagava enquanto rodava na bandeira 1.

Escorado na porta esquerda com o coração partido, Arthur via as luzes passando rápido enquanto o carro atravessava a avenida. Ele, homem trabalhador, honesto, que nunca deixou a partidinha de futebol interferir no emprego na firma, que sempre pagou as contas em dia, o máximo que já fez ilegalmente foi o jogo do bicho. Não aceitava ser chamado de machista não, machista é quem bate em mulher. É quem bate em mulher… é quem…

(…)

Com os olhos quase cerrados, de repente acorda do transe — que havia acalmado bastante o taxista — e dá um grito: ”motorista! Bora dar meia-volta!” Agora só no retorno, meu camarada, responde o taxista. Mas pra onde que você tá querendo ir?

Com o peito estufado e o ego inflado por relembrar mais um de seus valores de homem honrado, levanta o indicador e brada a plenos pulmões: toca pra igreja que eu vou pagar meu dízimo!

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